Europa

Portugal e a Europa de Joschka Fischer

    No  inicio dos anos sessenta Hans Morghentau, então Professor convidado do Instituto Universitário de Altos Estudos Internacionais de Genebra, respondia a um dos seus estudantes: “ sim, com  o nome de Federação há imensos países, mas os que, na sua essência, são de natureza verdadeiramente federal só conheço dois, os Estados Unidos da América e a Confederação Helvética”. Calhou que foi seguido no mesmo seminário pelo não menos prestigiado Raymond Aron que, à mesma pergunta dos estudantes respondia algo de semelhante acrescentando: “ no entanto a Federação americana teve de conhecer uma longa e sangrenta guerra civil antes de se chegar a um acordo sobre o seu sistema de subsidiariedade e definição do seu verdadeiro estatuto de cidadania.”

Esta pequena história ilustra bem o que se passa ainda hoje na Europa, ou seja uma grande confusão e ignorância sobre a natureza real de uma Federação. Talvez por essa razão em vários países da União Europeia muitos “nacionalistas” afirmados proclamam constantemente a sua acérrima vontade de defender a independência do seu pequeno país, pretendendo ser esta a única forma de salvaguardar a sua identidade secular, como se a mesma estivesse em perigo pelo facto da adesão a uma Federação. A primeira vista parece terem razão, salvo que não se dão conta  que, em face de um mundo globalizado, objecto de uma competição feroz, os pequenos países europeus e de outras regiões do mundo, estão condenados a adoptarem o único sistema de defesa por hora conhecido, ou seja, a adesão a conjuntos geopoliticos mais vastos sob pena de, não o fazendo, se encontrarem diluídos numa normalidade acéfala a que se chama mundialização. Aqui mais do que nunca se aplica o velho adágio popular  “ a união faz a força”.

Até ao presente, muitos se convenceram que os frágeis laços confederais que a Europa ocidental com tanto custo teceu, são suficientes para satisfazer as reivindicações acima citadas mas, começa a ser tempo de o negar. Na inocência da sua “lição” universitária, o Ministro dos Negócios Estrangeiros da maior e mais potente nação da União Europeia disse simplesmente que se deve começar a completar a obra encetada e que é portanto tempo de dar o maior salto qualitativo que o velho continente jamais efectuou,. As reacções, umas mais violentas que outras não se fizeram esperar. É natural que assim seja, os europeus sempre quiseram ter “ a manteiga e o dinheiro da manteiga”.

O Governo e as elites deste nosso jardim à beira mar plantado, que têm outras responsabilidades, que não são as dos nacionalistas e patriotas sem falha, pela voz do seu Ministro dos Negócios Estrangeiros reagiu, e bem, felicitando o Ministro Fischer primeiro e reincidindo algum tempo depois ao proclamar que deveríamos inspirar-nos, para a Europa, do modelo americano. A ignorância, associada ao eterno anti-americanismo primário, fizeram de imediato reagir os comentadores nacionais com as suas doutas lições “ provando-nos” que o modelo americano, criado há mais de duzentos anos não é aplicável à nossa realidade, chegando mesmo muitos a afirmar que foram soluções encontradas para situações concretas existentes nessa altura. Poderiam também fazer o raciocínio de outra maneira interrogando-se, por exemplo se é melhor então guardarmos um modelo que nos vem directamente da paz de Westfalia de 1648? Pelo momento é melhor não fazermos ao Ministro Jaime Gama, assim como aos construtores da Europa, a ofensa de pretender que eles nos aconselham a copiar tal sistema. O modelo americano é simplesmente tomado como exemplo de modelo federal. Há outros e inspirando-se neles pode fazer-se muita obra original.

Coisas muito sérias nos esperam para o futuro do país e é necessário encetar, o mais rapidamente possível, um debate sério e profundo sobre a maneira como desejamos assegurar o nosso futuro e o das gerações vindouras. Por outras palavras, devem ser feitas apenas duas interrogações para que se dê maior crédito a este debate: O futuro do país pode ser garantido fora de um conjunto geopolitico como a futura federação europeia? A independência e identidade secular de Portugal será melhor salvaguardada no quadro de uma federação de estados-nações ou aplicando as directivas de “eurocratas” dotados de uma muito duvidosa legitimidade política?

Não nos façamos ilusões. Joschka Fischer começa o seu discurso anunciando que vai tirar a sua veste de Ministro dos Negócios Estrangeiros e continua pedindo, mais tarde, para tirar o chapéu do mesmo posto, para falar das possíveis fases que a Europa vai atravessar para chegar a uma verdadeira Federação. Com ou sem veste e chapéu de Ministro, ele estava a anunciar-nos o que vai fazer desde já, o eixo franco alemão, sem se coibir de anunciar que, como quase sempre foi o caso, ele vai mais uma vez, servir de locomotiva para fazer com que a Europa dê um novo e significativo salto qualitativo.

A partir de 1955, quando se procurava não desperdiçar o imenso know how acumulado pela OECE e se tentava transformá-la na base uma futura Europa integrada, depois de intermináveis discussões, o eixo franco alemão, acompanhado pelo Benelux e o outro ex-inimigo, a Itália, avançou com a criação da CEE. Portugal, em nome da defesa das suas “províncias ultramarinas “ decidiu aderir à AELC (Associação Europeia de Livre Comércio) perdendo assim o comboio da integração europeia. É conhecido de todos e portanto inútil lembrar os males e atrasos que isso originou para o país. É necessário desta vez entrar para o comboio a tempo, não para uma carruagem mas, ao contrário, ter a coragem de se colocar na locomotiva.. É possível, para tanto basta ousá-lo. É imperioso integrar desde já o núcleo duro das ”cooperações reforçadas”. É verdade que para tanto precisamos que os partidos políticos, por uma vez, ponham os interesses de Portugal acima das querelas partidárias. Esta adesão é tanto mais necessária que, no discurso Fischer já se adivinham certas proposições incompatíveis com o espirito de uma verdadeira federação de estados-nações. Os pequenos e médios países têm que velar, do interior, para que não se consiga aumentar o desequilibro do peso demográfico, acrescentando-lhe a vantagem do domínio de certos aspectos institucionais.Eles deverão estar presentes para lembrar constantemente que a vantagem da Federação é precisamente criar, tanto quanto possível, uma igualdade que não sendo boa, seja a menos má, para parafrasear Churchill.

Sem veste e sem chapéu, o diplomata anunciou-nos friamente o que irá muito provavelmente passar-se na próxima década: Em primeiro lugar a conclusão da CIG com o acordo necessário nos três principais problemas objecto de grande controvérsia; em seguida com ou sem unanimidade, a formação do “ centro de gravidade” de países que constituiriam aquilo que já é chamado o “núcleo duro”, para um maior aprofundamento dos aspectos essenciais da integração já decididos; por último, a criação da Federação com a elaboração da respectiva Constituição.

Podem ser retiradas mensagens importantes desta parte essencial do discurso: a CIG terá que ser concluída no Conselho de Nice e subentenda-se, que quem  não aceitar ficará para traz assistindo ao aprofundamento dos  aspectos práticos já aprovados pelos Tratados e Conselhos. Por último não se poderia ser mais claro quando se diz a introdução da moeda única não é um facto de natureza económica mas sim um acto de soberania, portanto eminentemente político. Depois de citar as diferentes arquitecturas europeias propostas desde Schuman/Monnet até Delors/H.Scmidt/Giscard d’Estaing, passando por Genscher ou Wolfang Schäuble pode adivinhar-se que ele, como muitos, consideram este exercício como sendo, actualmente, pura retórica intelectual.

O importante para já, é começar a reflectir sobre a natureza da Constituição Europeia. Fazê-lo é fácil e complicado ao mesmo tempo Fácil, porque a maior parte dos seus capítulos já estão escritos e aprovados, sobretudo com a adopção, em breve, da Carta dos Direitos Fundamentais. Complicado, pois a parte mais difícil resta por fazer: a forma e a natureza das instituições para a Governance da Federação. Já se começou a discutir, um pouco por todo o lado, se deveria haver um Presidente ou não, eleito por sufrágio universal ou não, parlamento ou congresso bicamaral, etc. etc. Tudo isto é interessante mas pelo momento inútil (não se constrói uma casa começando pelo tecto). A natureza das instituições só pode ser determinada depois de se chegar a um acordo sobre a divisão de poderes entre a Federação e os Estados ou seja, os domínios reservados daquela e destes. Isto chama-se subsidiariedade e como diz Fischer é um palavrão de que toda a gente fala e, virtualmente, quase ninguém sabe o que é.

Como portugueses resta-nos chamar a atenção dos nossos políticos e Governos para um elemento fundamental: o poder dentro de uma Federação tem de ser exercido a nível local, nacional e federal. O país está relativamente bem preparado para os dois últimos mas possui o maior e mais preocupante déficit da Europa no que diz respeito ao primeiro. E que não haja ilusões, não há poder eficiente dentro de uma Federação com um poder local fraco. 

Luís Carlos Nunes